Seguindo
no clima natalino resolvi postar hoje, véspera de Natal, um conto
muito bom que eu li durante o ano que vai chegando ao seu fim. É um
texto do grande escritor russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881).
Admito que chorei da primeira vez que li. É, eu também sou um ser humano e
também tenho sentimentos, ao contrário do que muita gente pensa. Além do
mais, eu não estava num dos meus melhores momentos. Agora mesmo,
enquanto redigia o conto, uma lágrima teimosa escorreu pelo meu
rosto.
Extraí o
conto em questão do livro “Os Melhores Contos Bíblicos”
(Ediouro, 2006). A organização do livro e seleção dos contos fica
por conta de Flávio Moreira da Costa e a tradução deste conto em
específico é de Augusto Alencastro. Leia com bastante atenção:
faz-nos pensar muito. Segue o conto.
“Como
se fossem dois Dostoiévski: muito diferente da ficção vigorosa –
e grandiosa – de romances mundialmente conhecidos como Crime e
Castigo e Os demônios, este conto de um dos gênios da
literatura se aproxima da sentimentalidade eslava, ou da chamada
'alma russa'. Não é uma sinfonia: é uma canção, uma sonata em
tom menor escrita por um autor enquanto jovem. É a presença do
Natal na nossa antologia, a fazer dupla com o conto de O. Henry,
unindo ambos espírito de religiosidade com uma inegável crítica
social. Ou uma crítica religiosa de uma festividade religiosa?”
(Flávio Moreira da Costa).
I
Numa
cidade grande, na véspera de Natal, com o frio cortante, vejo uma
criancinha, ainda bem nova, 6 anos de idade, talvez até menos; por
enquanto nova demais para que a mandem pedir esmola na rua, mas com
certeza destinada a isso dentro de um ano ou dois.
Essa
criança acorda certa manhã num úmido e gélido porão. Está
embrulhada numa especie de roupão sórdido e treme. O ar que respira
sai por entre seus lábios em forma de vapor branco; está sentada
numa calha; para passar ao tempo, sopra o ar pela boca e se diverte
olhando-o escapar. Mas sente muita fome. Várias vezes, desde o
início do dia, aproximou-se do leito coberto com um colchão de
palha fino com gaze, onde sua mãe está deitada, doente, co a cabeça
repousada num monte de trapos no lugar de travesseiro.
Como ela
foi parar ali? Veio provavelmente de uma outra cidade e ficou doente.
A proprietária da vaga miserável foi presa dois dias atrás e
levada para a delegacia; é feriado hoje, e os outros inquilinos
saíram. Entretanto, um deles ficou na cama nas últimas vinte e
quatro horas, estupidificado com bebida, não esperando o feriado.
De outro
canto são lançadas as queixas de uma anciã de 80 anos, de cama com
reumatismo. A anciã foi outrora babá em algum lugar; agora morre
completamente só. Ela geme, choraminga e resmunga para o menininho,
que começa a sentir medo de chegar perto do canto onde está
deitada, como estertor da morte na sua garganta. Ele acha alguma
coisa para beber no corredor, mas não consegue descobrir nem um
pedacinho de pão, e pela décima vez vai acordar a mãe. Acaba
ficando assustado na escuridão.
Já é
tarde da noite e ninguém chega para acender o fogo. Encontra,
tateando em volta, o rosto de sua mãe, e fica atônito por ela não
se mexer mais e estar tão fria quanto a parede.
“Está
frio!”, pensa.
Fica
algum tempo sem se mexer, descansando a mão no ombro do cadáver.
Então começa a soprar nos dedos para aquecê-los e, achando seu
bonezinho na cama, olha suavemente para a porta e sai do alojamento
subterrâneo.
Teria
saído antes se não ficasse com medo do grande cachorro que late o
dia inteiro lá no patamar em frente à orta do vizinho.
Ah, que
cidade! Nunca antes vira uma coisa parecida. Lá longe de onde veio,
as noites são muito mais escuras. Só tem uma lâmpada para a rua
toda; casinhas baixas de madeira, fechadas com trava; na rua, desde a
hora em que escurece, ninguém; todo o mundo fechado em casa; só um
monte de cachorros que uivam, centenas de cachorros que uivam e latem
a noite toda. Ao mesmo tempo, costumava ser tão quente lá! E tinha
alguma coisa para comer. Aqui, ah, como seria bom ter alguma coisa
para comer! Que barulho aqui, e tumulto! Quanta luz e quanta gente!
Que cavalos e carruagens! E o frio, o frio! Os corpos dos cavalos
cansados exalam vapor com o gelo e suas narinas ardendo soltam nuvens
brancas; suas ferraduras tilintam no pavimento através da neve
macia. E como todos se esbarram uns nos outros! “Ah, como eu
gostaria de comer um pedacinho de alguma coisa! É por isso que meus
dedos estão doendo tanto.”
II
Um
policial passa e vira a cabeça de modo a não ver a criança.
“Aqui
tem outra rua. Ah, como é larga! Posso ser esmagado até a morte
aqui, eu sei: como eles todos giram, como correm, como rodam! E a
luz, e a luz! E aquilo, o que é aquilo? Ah, que vidraça grande! E
atrás da vidraça, uma sala, e na sala uma árvore que vai até o
teto; é a árvore de Natal. E que luzes debaixo da árvore! Que
pacotinhos dourados e que maçãs! E, em toda a volta, bonecas e
cavalinhos-de-pau. Há criancinhas bem-vestidas, bem-comportadas e
limpas; estão rindo e brincando, comendo e bebendo coisas. Há uma
menininha indo dançar com o menininho. Como é bonita! E há música.
Dá para eu ouvir através do vidro.”
A criança
olha, admira e até ri. Não sente mais dor nos dedos das mãos nem
nos pés. Os dedos ficaram todos vermelhos, não pode mais dobrá-los
e custa muito movê-los. Mas, de repente, sente os dedos doerem;
começa a chorar, e vai embora. Percebe através de outra janela
outra sala e, de novo, árvores e bolos de todo tipo na mesa,
amêndoas vermelhas e amarelas. Quatro lindas senhoras estão
sentadas, e quando alguém chega recebe um pedaço de bolo; e a porta
abre a todo momento, e muitos cavalheiros entram. O amiguinho se
aproximou, abriu a porta de repente e entrou. Ah, que barulho foi
feito quando o viram, que confusão! Imediatamente uma senhora se
levantou, pôs um copeque na sua mão e abriu a porta da rua para
ele. Como ficou amedrontado!
III
O copeque
cai de suas mãos e vai tilintando nos degraus da escada. Não
consegue fechar os dedos o suficiente para segurar a moeda. A criança
sai correndo, e anda rápido, rápido. Aonde estava indo? Não sabia.
E corre, corre, e sopra suas mãos. Está perturbado. Sente-se tão
só, tão assustado! E, de repente, o que é isso? Tem uma multidão
parada, admirando.
“Uma
janela! Atrás da vidraça, três lindas bonecas trajadas com
minúsculos vestidos vermelhos e amarelos, exatamente como se
estivessem vivas! E o pequenino velho sentado, que parece tocar o
violino. Há outros dois, também, de pé, que tocam violininhos, que
marcam o compasso da música com a cabeça. Olham um para o outro e
seus lábios se movem. E falam de verdade? Só que não dá para
serem ouvidos através do vidro.”
E a
criança primeiro acha que estão vivos e, quando compreende que são
apenas bonecos, começa a rir. Nunca vira bonecos assim antes, e não
sabia que existiam! Gostaria de chorar, mas aqueles bonecos são
engraçados demais!
IV
De
repente, percebe que o agarram pelo casaco. Um menino grande e
valentão está perto dele e lhe dá um soco na cabeça, arranca seu
boné e dá uma rasteira nele.
A criança
cai. Ao mesmo tempo, há um grito; ele permanece um momento
paralisado com medo. Depois, levanta-se de chofre com um salto e
corre, corre, se lança por baixo de um portão em algum lugar e se
esconde num pátio atrás de uma pilha de madeira. Encolhe-se e treme
de medo; mal pode respirar.
E de
repente fica bem tranquilo. Suas mãozinhas e pezinhos não doem
mais. Está quente, quente como se estivesse perto de uma estufa, e
todo o seu corpo treme.
“Ah,
vou dormir! Como é bom um sono! Vou ficar um pouquinho e depois vou
ver os bonecos outra vez”, pensou o amiguinho e sorriu com a
lembrança dos bonecos. “Eles pareciam mesmo como se estivessem
vivos!”
Então
ouve a canção de sua mãe. “Mamãe, vou dormir. Ah, como é bom
aqui para dormir!”
“Venha
para a minha casa, menininho, para ver a árvore de Natal”, disse
uma voz suave.
Pensou a
princípio que era sua mãe; mas não, não era ela.
Então,
quem o está chamando? Ele não vê. Mas alguém se inclina para ele
e o envolve em seus braços, na escuridão; e ele estica sua mão e –
de repente – ah, que luz! Ah, que árvore de Natal! Não, não é
uma árvore de Natal; nunca viu coisa igual!
Onde está
agora? Tudo é resplandecente, tudo é radiante, e bonecos por todo
lado; mas não, bonecos não, menininhos, menininhas; só que são
bem brilhantes. Circulam todos em volta dele; voam. Dão abraço
nele, o pegam e levam embora, e ele vai voando também. E vê sua mãe
olhando para ele e rindo alegremente.
–
Mamãe, mamãe! Ah, como é bom aqui! – exclama seu menininho para
ela.
E de novo
abraça as crianças, e gostaria muito de contar a elas sobre os
bonecos atrás da vidraça. – Quem são vocês, menininhas? –
pergunta, rindo e acariciando-as.
É a
árvore de Natal na casa de Jesus.
Na casa
de Jesus, nesse dia, há sempre uma árvore de Natal para criancinhas
que não a têm.
E ele
soube que todos esses menininhos e menininhas foram crianças como
ele, que morreram como ele. Alguns morreram de frio em cestas
abandonadas nas portas dos funcionários públicos de São
Petersburgo; outros, de fome nos seios secos de suas mães durante a
inanição. Todos estavam aqui agora, todos anjinhos agora, todos com
Jesus, e Ele Em Pessoa entre eles, dando-lhes as mãos, abençoando-os
e às suas mães pecadoras.
E as mães
dessas crianças estão lá também, separadas, chorando; cada uma
reconhece seu filho ou filha, e as crianças voam até elas, as
abraçam, limpam as lágrimas com suas mãozinhas e pedem a elas que
não chorem.
E aqui
embaixo, na terra, o porteiro da manhã achou o corpo pequenininho da
criança que se refugiara no pátio. Jazia duro e congelado atrás da
pilha de madeira.
A mãe
foi achada também. Ela morreu antes dele; ambos estão reunidos no
Céu, na casa do Senhor.